Tem sido muito interessante acompanhar nas mídias nacionais e internacionais a repercussão da série do Netflix 3%. Discutindo entre alguns amigos e lendo as críticas nacionais a maior qualidade da série 3% tem aparentemente passado por alto apesar de ser o centro da mensagem e repetido de forma constante durante todos os episódios. Porque têm sido tão difícil certa parcela do público nacional ir além de simplesmente criticar aspectos técnicos enquanto sites como Motherboard e io9 valorizam justamente a novidade da mensagem que a série traz? Talvez o cerne da questão é que 3% duramente questiona a situação político-social brasileira e os ideais de como o país pode melhorar ao constantemente reforçar que “Você (não) é o criador do seu próprio mérito”.

Introdução

O subgênero (ficção científica adolescente ou young adult sci fi) que o 3% tá inserido está em baixa. Os filmes finais de Jogos Vorazes arrecadaram menos que seus predecessores, o filme Convergente arrecadou 1/3 do que Divergente e outras séries nem passaram do primeiro filme (The Giver, Enders Games, etc.). 3% nasceu em 2009 antes mesmo de Hunger Games sair nos cinemas aparentemente também com grandes influências do filme japonês Battle Royale. 5 anos depois do piloto estreiar no youtube em 2011 finalmente sai a série completa em um contexto onde o subgênero que ele trabalha já está super saturado com dezenas de produções estratosféricas.

Muitas críticas partem dessa comparação e descentralizam a mensagem como não importante, fraca ou irrelevante. Alguns exemplos:

A ideia de 3%, ainda que um pouco atrasada — a era das distopias com divisão de classe na ficção já está passando — é fascinante.(…) A série tem ótimas ideias, acompanhar os testes é interessante… Mas as inconsistências e furos do roteiro, a falta de construção do mundo e os problemas de atuação prejudicam demais o produto final. (Guilherme Jacobs — Omelete)

Em artes visuais mais complexas e técnicas (como o cinema e o videogame) a mensagem está sempre presa a como ela é exposta através da aparato técnico. É triste mas compreensível ver quando para algumas pessoas as falhas no roteiro e nas atuações impedem de ver mais além.

Já por essa breve sinopse, percebe-se nessa distopia excertos de ideias consagradas em grandes séries americanas (como “The walking dead” e “Wayward Pines”). E, é preciso dizer, tais ideias também já foram surradas por outras séries americanas que, por sua vez, emularam as histórias pioneiras. “3%” é, portanto, a cópia da cópia, o enredo que virou suco. (Patrica Kogut — O Globo)

No lugar da metáfora original entrou um discurso genérico de exclusão social que lembra a motivação de filmes como Jogos Vorazes e Divergente, só que sem a profundidade destes. E sabe-se que não são franquias conhecidas pela profundidade de seus roteiros. (Rafael de Pino — Motherboard Brasil)

Uma outra parte dos críticos e público compreenderam a mensagem de uma forma totalmente distinto do que está na série. Jogos Vorazes e Divergente ocorrem em mundos controlados por um sistema de castas aonde os personagens justamente fazem seu próprio caminho contra todas as circunstâncias. Em um mundo engessado e controlado é justamente aí que somente através do seu esforço e sacrifício próprio você consegue chegar no lugar aonde você merece– o topo. Esses filmes reforçam o conceito do Self Made Man. Cada passo e a ação da Katniss Everdeen nos Jogos Vorazes, da Tris em Divergente e os outros protagonistas dessas séries gritam “Eu sou o criador do meu próprio mérito”.

É através dessa convicção que os esforços das protagonistas não serão em vão. Que pelo mérito das suas ações as barreiras que impossibilitam sua ascensão serão quebradas. Essa crença ferrenha no próprio mérito é justamente o tema do 3% e que o distingue das comparações acima. Não importa o que você faça, você não está no controle e suas ações não garantem o seu futuro. Não é por acaso que os personagens que mais acreditavam no processo ou saíram fora ou foram mortos no caminho. Os poucos que passaram, o Rafa e a Michele, foram justamente os que entraram desacreditados e com a intenção de sabotar o processo.

O constrangimento da meritocracia

Se, no enredo e na trama, o roteiro carece de originalidade, lembrando “Jogos vorazes”, “Elysium”, “Divergente”, “Maze Runner” e diversos outros filmes e seriados que exploram situações semelhantes, a crítica tola à meritocracia embutida na história é constrangedora. (…) A mensagem é clara: a elite que enaltece o mérito é a mesma que promove a desigualdade. Numa sociedade ideal e paradisíaca, tudo será oferecido de mão beijada a todos, independente do empenho e do talento individual. Que maravilha. (Luciano Trigo — Máquina de Escrever)

Luciano Trigo por outro lado discute que a crítica a meritocracia é tola e constrangedora perdendo de vista um outro aspecto fundamental da série. O personagem principal não são os jovens que estão batalhando para entrar no Maralto mas sim o Ezequiel (interpretado por Miguel Gomes). É através dele que a série trabalha conceitos para além do simples assistencialismo, o receber tudo de mão beijada do Luciano Trigo.

Nessa 1ª temporada assim como Odisseu (ou Ulisses se preferir), Ezequiel conquista sua Tróia particular ao chegar ao topo da sociedade do “lado de lá”. Entretanto essa conquista trouxe também uma grande perda– a morte da sua mulher. A descoberta e a aceitação do seu novo “filho” traz todo o problema de como ele poderá voltar para casa. É através dessa sobreposição do desejo de cuidar do afilhado e de sua impossibilidade que uma alternativa a meritocracia é desenhada.

Em a Odisseia o herói está sujeito aos desejos dos deuses que resolvem o castigar e impedir que retorne a sua casa. Não importa que ação ele faça, sem a ajuda dos deuses será impossível seu retorno. Atenas se compadece do herói e trama com ele um plano para ele voltar a Ítaca. Uma das etapas do plano envolve que Odisseu seja transformado em um velho pedinte para que ele possa se achegar a sua família sem ser reconhecido, o mesmo que Ezequiel tem que fazer para conseguir chegar perto do seu afilhado. Coincidência só? Na verdade não importa se foi proposital ou não, assim como os jovens que passam pelo processo Ezequiel também não tem controle total sobre sua vida. O mérito só leva até certo ponto e está subordinado aos desejos de forças maiores.

A maior parte dos filmes hoje prega justamente o contrário a isso. Você pode! Você consegue! Seu esforço será recompensado! Seu sacrifício nunca será em vão! Você cria seu próprio mérito! Ter essa visão mais realista das nossas impossibilidades é uma característica da série ser criada no Brasil e de não estar tão preso as visões colonialistas da indústria do entretenimento. 3% surge então como uma manifestação pós colonialista rejeitando o conceito do Self Made Man tão recorrente nas produções americanas. Interessante que levou um site americano para comentar isso:

Most importantly, it’s science fiction from a non-American perspective. Dystopian sci-fi has homogenized over the years- partly because there’s so much of it, and also because diverse voices keep being pushed aside in favor of the latest “white American teen has problems with authority” storyline. (…) It’s dystopian science fiction through a Brazilian perspective, and there are themes and storylines present that you wouldn’t see in a normal Divergent-type show. (Beth Elderkin — io9)

Pós colonialismo sci fi

Até hoje o sci fi é um gênero cinematográfico praticamente exclusivo do Estados Unidos. Existem alguns bons exemplos também na Europa, Rússia e na Ásia mas dificilmente eles alcançam a expressividade dos blockbusters americanos. Qual foi a última vez que você viu alguma imagem de países latino-americanos no futuro? Estou perguntando literalmente no futuro… Alguma representação do Brasil em 2100 por pior que seja já foi feita que conseguiu alcançar uma larga escala? Se dependermos do que está sendo feito hoje a impressão é que o único país que resistirá a passagem do tempo será os Estados Unidos e que a única língua será o inglês.

Edward Said em seu livro Cultura e Imperialismo comenta que “as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo; elas também se tornam o método usado pelos povos colonizados para afirmar sua identidade e a existência de uma história própria deles” sendo que possuir o poder significa possuir o poder da narrativa, pois “o poder de narrar, ou de impedir que se formem ou surjam outras narrativas é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos” (SAID, Cultura e Imperialismo, p. 111.)

Ao se apropriar de um gênero cinematográfico como o sci fi e impor uma narrativa localizada no Brasil a série 3% insere a língua portuguesa, o Brasil e a nossa cultura como algo duradoura. Por mais fugaz que seja quão emocionante ouvir a música da Elza Soares em uma ficção científica! Mas essa resistência pós colonial não fica só na forma da série 3%. Como o site io9 intuitivamente compreendeu ser feito no Brasil influencia de forma única os temas tratados.

3% surge em um país aonde meritocracia sempre foi uma impossibilidade. Em um nível histórico sempre houve potências maiores influenciando os acontecimentos do país. Em um nível pessoal se você não é um homem branco heterossexual suas chances de ascensão social são muito menores independente do quanto você trabalhe e se sacrifique.

Nossa história política também colabora para esse nosso desejo de vermos pessoas competentes que estão no cargo pela suas capacidades administrativas e não porque sabem como ganhar no jogo político. É um desejo da população que nossos governadores mereçam estar lá pelas suas ações e não por seus contatos. A meritocracia na nossa sociedade é vista como a solução para a corrupção em todos os níveis (no trabalho, na cidade, no governo, etc.). Imagina um futuro aonde o filho do Eike Batista teria que batalhar e passar pelo mesmo processo que todo mundo para ser alguém na vida? Quem não gostaria de uma sociedade assim! Que sonho uma sociedade aonde ser filho de político, ter nascido em uma família tradicional, ou ser um filho de milionário te dariam as mesmas chances na vida que alguém que nasceu sem nada! Seria errôneo então desejar uma sociedade meritocrática?

Conclusão

Ao colocar esse questionamento em uma situação extrema a série contrapõe a meritocracia com o determinismo– temos controle somente sobre uma pequena parte da nossa vida. Uma sociedade aonde somente o mérito é válido ignora que o ser humano não é plenamente dono do seu destino. Realizar que nossas ações influenciam somente até certo ponto não é o pensamento mais popular nos dias de hoje e aprofundar nesse tema já assusta muitas pessoas.

É o trabalho de uma série oferecer uma alternativa político-social para um problema filosófico que permeia a humanidade e influencia desde nossa vida pessoal a política do país? Creio que não. O que 3% faz muito bem é questionar o que queremos para o nosso futuro como pessoas e como sociedade.

Nesse exato momento aqui na Espanha a série 3% está trending no Netflix faz algumas semanas o que me faz pensar novamente no Edward Said e como as narrativas pós colonialistas se integram no mundo contemporâneo

…a maioria de nós deveria considerar a experiência histórica do império como algo partilhado em comum. A tarefa, portanto, é descrevê-la enquanto relacionada com os indianos e os britânicos, os argelinos e os franceses, os ocidentais e os africanos, asiáticos, latino-americanos e australianos, apesar dos horrores, do derramamento de sangue, da amargura vingativa. (SAID, Cultura e Imperialismo, p. 24.)